domingo, 22 de maio de 2011

A partida.

Estava partindo. E, diferentemente daquelas vezes que costumava pegar a chave, pendurada por trás da estante, levava consigo uma pequena mala no ombro. Justamente aquela jogada no canto do armário, coberta pelo mofo de alguns anos e pelos séculos passados de sua história conjunta.
Ele estava pensativo, atônito. Abotoava apreensivamente os botões de sua blusa amarrotada, enquanto metabolizava suas próprias atitudes presentes. As quais ele sequer tinha uma justificativa para sustentá-las, suportá-las com viés de motivos.  Porque as suas atitudes eram conseqüências órfãs, desprovidas de causas, de razões.  E divagavam pelo seu universo mental, coordenando as suas raízes nervosas que, racionalmente, implicavam-lhe andar em uma direção, aparentemente, sem propósito. Aparentemente sem rumo. Mas milimetricamente planejada.
E, agora, no corredor, que dava passagem aos outros cômodos da casa, a concisão daquele espaço era suficiente para fazê-lo parar o tempo. Analisar sua trajetória, que, na verdade, não era singular, e fazê-lo pensar duas vezes em sair sem dar-lhe alguma satisfação. Sem deixar-lhe sequer um bilhete. Ela era uma boa mulher, sabia. E deixá-la sem nenhum parâmetro, sem nenhum suporte, seria ignorá-la como parte integrante de sua vida. Da qual, por mais que o tempo inevitavelmente passasse e lhe decodificasse marcas faciais, ela não iria se dissociar. Ela não sairia de sua vida da forma simples como ele estava abandonando aquela velha casa. E toda sua própria história. O fato é que ela era, extremamente, dependente. Dependente de seus eixos, dependente de suas teorias falhas. De seu universo, particularmente, inusitado, que lhe fazia fugir do normal e sentir-se mais solta. Mais humana, talvez. Além de sua capacidade de fazer com que seu o mundo girasse devagar, modulado pela sua cautela imensurável.
Mas, de repente e como tantas outras histórias de amor que estão em seus minutos finais, ele parou. E, bem próximo à porta de saída, resolveu voltar, brevemente, o olhar. Queria captar, por fim, a imagem completa daquele local, daquela realidade. Queria arquivá-la, somente, para em algum momento posterior, reavivá-la. Reascendê-la do passado e ter a certeza de que fez parte de uma história real.  Foi, nesse momento, que, em ímpeto, um fluxo irrevogável de lembranças veio à tona, como se simplesmente quisesse respirar pela ultima vez. Emergir do seu próprio acervo mental, como forma de fuga. E essas lembranças trouxeram-lhe àqueles dias em que, ao chegar cansado do trabalho, ela lhe despia por completo o paletó. Passava-lhe, cautelosamente, a mão sobre a sua cabeça e chamava-lhe para jantar. Os seus abraços sinuosos, o seu perfume entorpecedor. E sua voz sublime que tanto lhe desejava boa noite e clamava-lhe as mais sinceras felicidades nos dias comuns.
É verdade, ele não sabia bem os motivos. Para ser sincero, não queria nem saber. Porque embarcar para dentro de si, naquele momento, a procura de pelo menos se entender, explicar-se nem que fosse pelas mais simples razões, seria a maneira mais previsível de esquivar-se e de não fechar a porta. De não partir. E ele apenas precisava fazer aquilo. Precisava largar todo aquele plano sistematizado, toda aquela realidade arquitetada que havia sido construída para os dois. E voltar para si mesmo, para seu universo, como forma de resguardo.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Querida.

Eu só queria te fazer sorrir.  Fazer com que - em meio a tantos desalentos, tantas angústias, e razões lastimáveis que, inevitavelmente, aconteciam- encontrasses algum motivo para se levantar. Equilibrar-se em um substrato que de tal forma sequer existia. Que estava apagado, disforme. Porque, em sua mente, o concreto e o abstrato já haviam assumido um aspecto único e indissociável. Que se sublimava a todo o momento, a todo instante. E a verdade era, tão somente, que não havia mais certezas, não havia mais convicções. Era tudo síntese. Um somatório de causas e razões dos mais diversos tipos. Incoerentes e coerentes. E nem tudo mais era realidade.
Queria poder te ajudar. Poder fazer-te acreditar em dias mais ensolarados, até em outras possibilidades. Por mais distantes que elas estivessem, por mais utópicas que elas se conformassem. Queria resgatar-te do abismo, formatado pelo tempo e fazer-te crer que, ainda, é possível acreditar. Porque eu também consegui. Lembro-me bem que eu costumava segurar a tua mão e apertava-a bem forte, entrelaçando nossos dedos, a fim de te manter mais segura. Daí, eu te levava a um longo passeio, condensado naquela efemeridade de instantes, que tu afixavas os teus olhos nos meus. Como uma forma de suporte ou mesmo uma viga de concreto metafórica. Porque tu mesma me dizias que eu era, por vezes, a garantia de retificar as tuas mais falhas ideologias. Tuas mais falhas certezas.  E, por fim, levava-te ao encontro dos teus próprios sonhos. Para mostrar-te o mundo que aguardavas. Que te esperava, tão arquitetado, tão mais sublime e avesso, inclusive, àquelas tonalidades cotidianas clichês. Era, nós viajamos constantemente, e confesso que eu fazia isso para mostrar, também, a mim mesmo que era possível acreditar. Acima de qualquer dificuldade. Acima de qualquer utopia.
E quantas vezes eu te pedi, quantas vezes, incansavelmente, implorei pelo teu bem estar. Como se isso fosse algo voluntário de se obter. Como se tivesses o próprio controle do teu estado sentimental e pudesses fazer como que o mundo girasse modulado em torno de tua própria freqüência. Tu eras tão vulnerável, tão frágil e eu não sabia.  E as minhas tentativas falíveis de fazer-te bem mais harmônica, ao te pedir que soltasses mais os cabelos, presos por trás das orelhas. Que mudasses a cor do batom, para sentir-se mais atraente.  É verdade, as minhas loucuras tinham fundamentos. Mas apesar de estar longe, querida, teleporto-me, constantemente, para bem perto de ti, sem que saibas. Para perto dos teus sonhos. E digo que permanecerei bem aqui. Nesse lugar bonito que tu viesses comigo em um dos nossos passeios. A tua espera. E, sobretudo, acreditando.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Simplifique.

"É síntese, uma integração de dados: não há que tirar nem pôr. Não me corte em fatias (ninguém abraça pedaços)."
                                                                                   
A verdade, porém, é que já estava eu completamente desvinculado. Não conseguia sequer sentir o peso de minhas articulações, aparentemente jovens e saudáveis. Justamente, elas que estabeleciam uma ponte de contato entre os meus sistemas orgânico e sinestésico. Era estranho, mas, sobretudo, admissível a um garoto apaixonado por sinestesias. Pelo devaneio palpável e pela realidade psicodélica. Bem, a minha. O fato é que, nesse momento, como de costume, eu estava um estilhaço por completo. Um conjunto aleatório de vértebras e sentidos, misturados sem nenhum propósito ou fim. Sem nenhuma coesão. E precisava de algo a mais que me fizesse pulsar, que me fizesse sentir substancialmente o real sentido da vida; que me fizesse se sentir íntegro, mesmo sendo dono de uma gama de convicções particulares e uma personalidade própria. Forte, pujante.  A qual me dilacerava constantemente em pedaços comuns.
Mas eu não só tinha uma personalidade fixa. Ou melhor, era uma personalidade multifacetada. Havia chegado a essa brilhante conclusão ao conversar com uma grande amiga e ao perceber minhas oscilações diárias de comportamento. As quais me ocupavam mentalmente com todas aquelas preocupações constantes de tentar mudar e modificar-me. Ou de tentar, ao menos, descobrir-me. Redescobrir-me em um exercício contínuo. Enxugando meus próprios pleonasmos, suprimindo os meus excessos desnecessários e aprimorando as minhas mais íntimas metáforas. Porque a vida é uma metáfora infindável.  A qual se desgastava, paulatinamente, pelo acúmulo de poeira, oriunda de meu descaso cotidiano. De meus compromissos diários, e de minha racionalidade visualmente marcante.
Pois sim. Foi quando tropecei bem em frente a minha imagem, colidi com aqueles traços nítidos e simultaneamente confusos; entrei em rota de colisão com meus diferentes constituintes, cujas teorias e convicções eram avessas e tentei entendê-los. Aceitá-los. Sem querer, no entanto, organizá-los em compartimentos dissociáveis, porque, afinal, eu era a síntese de tudo aquilo. De todas aquelas personalidades. Um paradoxo. Que precisava somente existir. Sem a necessidade de ser interpretado por pessoas que buscam, constantemente, as clássicas relações de causa e efeito. Que buscam razões, as quais não necessariamente existem. Porque raciocínios não precisam ser retilíneos e uniformes, para efetivamente, serem racionais. E como demorei a perceber isso tudo...
Daí, nessa busca desesperada por tentar manter unidas todas as minhas partes singulares, encontrei um alguém. Uma  pessoa querida, as palavras mais doces que, dependendo da dose, poderiam funcionar como os mais potentes analgésicos. Paliativos ou duradouros.  Foi quando procurei me sentir bem e buscar as mais simples análises para as minhas preocupações.  Simplificar a complexidade dos meus motivos. Tentando reduzi-los ao máximo como sempre pedias, ao descer daquele carro de cor verde-azulada. Pedindo para que eu ficasse bem. Sua cautela sem medidas, o seu olhar atencioso que envolvia as minhas múltiplas direções de campo visual. Na tentativa de compreender-me nem que fosse por um instante. Um detalhe. E era, nesse exato momento, que sorríamos juntos. De uma forma não tão compassada, mas original. Nossa. E, de repente, como quando eu te pedia para ser abraçado por alguns longos segundos. Para que eu, escondido, pudesse depois converter aquele momento em minutos, horas, ou tardes inteiras. É verdade. Tu nem sabias, mas agora te confesso que aquela era a forma de eu me sentir mais inteiro, mais completo. Conciliando todas as aquelas minhas partes soltas, que você as segurava nos braços e sequer sabia. Sustentava, por aqueles contáveis segundos, a carga de minha história. A minha vida, os meus pensamentos. Minhas múltiplas realidades, meus múltiplos EU’s. E quando tu me soltavas, já nem era mais tão tarde para recomeçar. Ali, eu estava apto a andar com os próprios pés, disposto a vasculhar meus escombros. E, novamente, reunir os meus próprios pedaços.