sábado, 30 de abril de 2011

Maio.

‘’ Nós dois nos olhávamos profundamente, como se houvesse algo a ser descoberto. Ou, simplesmente, como se apenas houvesse algo a ser dito. Externado. Expurgado dentes a fora, da maneira mais suave possível. Mais sincera e mais amável. Mais afável. Porque você era feita de delicadeza. A simplicidade em forma de pessoa. Em forma de mulher. E ali estávamos- sentados do lado direito do pátio, como de costume, - lado a lado. Só que separados por significativos quilômetros de convicções, abismos sentimentais e razões fúteis. Sim, razões fúteis. E justificativas momentâneas, daquelas que se diluem com o tempo.
 [...]
Foi quando você quebrou o silêncio. Equilibrou-se em torno de sua própria linha de raciocínio e, diferentemente do que eu esperava, inundou-me com as poucas seguintes palavras: ’Maio já está acabando. E até quando vamos ficar assim?!’  Não havia mais nada a ser dito, porque você, naquele momento,  já havia feito tudo.”
E agora, antes que ele comece de baixo dessas gotas de chuva, vim anunciar a sua chegada. Como sempre costumava fazer, sussurrando aos pés de seu ouvido, ou até mesmo com os bilhetes disformes de folha de papel. Rasgados sem a necessidade por uma perfeição simétrica. E a verdade, quetu bem sabes, é que nesse ano não existem mais bilhetes. Nem se faz mais assídua a minha pertinente voz que versava sobre os paradoxos, as loucuras e os devaneios pelos quais passaríamos. Porque, assim como aquele ano, esse mês também vai passar. E nós iríamos, mais uma vez, falir. Sim. Falir se fôssemos nos transformar em tentativas para converter em maio todos os outros meses. Para que pudéssemos resgatar a chance de voltar a esse tempo e cantar, em uma mesma sinfonia, a música que marcou a nossa amizade. Para que pudéssemos rir de nossas tradicionais futilidades e fingir que éramos felizes. Sobre aquelas circunstâncias, evidentemente. Para que pudéssemos retroagir àquele momento em que te abracei, porque tu estavas desesperada com o fim do mês e o possível fim da nossa amizade. E agora eu te digo que maio já começou. Ou melhor, recomeçou. Assim como os dias e as noites se sucedem, assim como as nossas próprias palavras, em estrofes de uma música, são recicladas e também se sucedem; assim como quando toda vez que te abraço, retorno àquele mesmo instante que tu fizeste tudo valer à pena. Com pequenas e simples palavras. Por isso, meu bem, tenhas certeza: Maio nunca vai acabar.

sábado, 23 de abril de 2011

Um bilhete.

                                         
‘’Podes nem acreditar, podes até nem querer saber; podes, inclusive, ter as suas inúmeras razões, não contesto. Mas a verdade é que tu me fazes falta. De uma maneira que eu sequer consigo narrar. Saibas disso e uses como achar mais conveniente. E saibas, também, que o lugar onde eu te guardo continua sendo o mesmo. Inalterado. Em que te carrego na forma de palavras versando sobre borboletas- grafadas em tinta verde- em um papel amarrotado, ainda na minha carteira. No meu bolso. Onde quer que eu vá.’’
                                                                                 Um amigo.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Castelo de cartas.

“Eles gostariam de salvar a paixão, de fazê-la durar, de conservá-la... Como poderia, se ela não depende deles, se a duração a mata, quando ela está feliz, já que a idéia de conservação é o contrário da paixão? Toda falta se aplaca, se não mata: porque a satisfazemos, porque nos habituamos a ela, porque a esquecemos...”.
                                                                                                                                 André Comte-Sponville.
 E o fato é que ela havia acabado. Demorou um pouco para ambas as partes perceberem. Aceitarem. Porque, em essência, já não fazia mais sentido, já não havia mais o mesmo encanto. Não olhavas mais nos meus olhos a procura de uma razão palpável para justificar a tua presença naquele lugar. Porque talvez nem houvesse mais justificativas. Não houvesse mais fins, nem afins. Talvez porque tudo já havia sido descoberto e os mistérios já teriam assumido a face de certezas. E foram essas certezas que nos fizeram olhar, continuamente, de uma forma vaga, porém, milimetricamente, mensurável para os nossos próprios papéis. Nossos próprios eixos. Eu conseguia perceber, nitidamente, a sua perda interna, na tentativa de camuflá-la, como de costume, em artifícios seus. Com a sua assídua inconstância. A qual me desafiava. A qual me dilacerava em vértebras incomuns, singulares. E que me contagiava. Sim. Daí eu passei a me perder nos seus caminhos mais íntimos, a vasculhar os seus escombros sentimentais, em busca de repostas para as minhas próprias atitudes. Meus próprios motivos. Mas elas, as respostas, eram difusas, eram redundantes. E esse ciclo vicioso, somente, fez-me chegar à conclusão de que erramos em conjunto. Dançamos uma valsa sincrônica e fomos cúmplices. Porque chamamos nossos erros de pontos de vista.
Mas não. Não foram erros. Atribuir essa denominação a tudo seria uma maneira simplista de querer que existam culpados; de querer sintetizar ao máximo os fatores em busca de um denominador comum; de querer que existam desculpas, lágrimas ou, quem sabe, arrependimento. E não há arrependimentos. Ambos sabíamos que, na verdade, houve uma gama seqüencial de fatos, atropelados. Mal interpretados. E não houve, sobretudo, tempo. Não houve circunstâncias que viabilizassem um encontro, não houve possibilidade sequer de visualizar o seu rosto. De saber que está bem, de ver que você não precisava mais de mim e, inevitavelmente, poder eu validar as minhas próprias conjecturas. Materializando-as.  Porque eu precisava voltar ao meu plano real, ao meu substrato, as minhas ideologias. Que se encontravam em repouso. Eu me encontrava em repouso. Esperando, sonhando. E, por fim, cansei. Cansei de acreditar, cansei de ressuscitar as suas palavras, tentando ordená-las de uma maneira que me fizesse sentido. Que soasse coerente aos meus ouvidos. Coerente a sua pessoa. Mas nem elas se fizeram presentes no momento em que tentei buscá-las no meu acervo mental. No porão de minha alma. Na reles expectativa de formatar a tua imagem quando brotavam as sextas-feiras nubladas. E o cinza do céu ambientava o pano de fundo da minha memória, de uma maneira particular. Intimamente, sua.
Pois bem.  Foi nessa busca incansável por palavras que encontrei o seu silêncio. E que passei a formatar o meu também, como se fosse um decalque. Porém, cada um com certo tom de originalidade. Fiel aos nossos próprios sentidos e instintos. Foi quando, também, eu me calei. E deixei de sorrir como sorria antes, andando, desconcertadamente, pela rua e distraído em uma aula chata. Ou como quando trafeguei pela aquela avenida, sentado no ônibus, que antes de  embarcar você havia gritado o meu nome. Para dizer que havia sido massa. É, e foi.  Você nem sabe, mas a verdade é que eu embrulhei aquele momento e guardei nos meus arquivos confidenciais. Para não amarrotá-lo com as dobras e nuances do tempo. Para não perder a sua cor autêntica e desbotada de um fim de tarde. E para me servir de certeza de que até pequenos momentos valem a pena. Por mais sucintos que sejam, por mais rápidos que se apresentem. Por mais rápidos que eles se esvaiam. Como um vento que sopra. E como eu mesmo assoprei o meu próprio castelo de cartas. Para que ele não se degradasse ou perdesse sua forma vulnerável. E para que outras histórias, outros casos, outras paixões pudessem acontecer. Tivessem a chance de existir. Assoprei, apenas. Mas conservo em mim a imagem integra e sólida disso tudo, edificada em minha memória.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Um lápis, um desenho, uma lembrança.

Eu sigo. Pelo menos continuo seguindo. Apesar da existência daqueles dias em que seguir se torna um exercício estafante, e você parece pairar em meio a todo um oceano de compromissos, cujas marés são embalsamadas por um distúrbio climático chamado cotidiano. É quando você se sente andando em uma linha imaginária retrógada, um caminho contrário; simétrico, no entanto. E você, nesse eixo difuso, próprio dos padrões psicológicos mais íntimos, intrínsecos, alimentados por sua alma confusa, porém veemente, depara-se com as antigas coordenadas de sua vida. Não tão antigas. Passadas, apenas.

Abri os olhos. E, diferentemente daquele dia nublado, tu não estavas aqui. Nem mais tão perto, nem mais presente. Foi quando os dias nublados perderam a sua tonalidade desbotada, própria dos momentos mais íntimos dos casais, e a cor cinza, que tomei emprestada para pintar os meus dias comuns, voltou a pertencer ao estojo de uma criança que, há mais de uma década, deixou de existir. Porque agora ela se fazia um adulto. A verdade é que quando criança, eu não entendia a necessidade da existência de uma cor tão amorfa, tão disforme, resultante da indecisão dos mais perfeitos paradoxos: o branco e o preto. E, hoje em dia, entendido por gente grande, sei da necessidade de existir aquele lápis de cor, praticamente ignorado em um estojo farto de possibilidades; o que seria dos amantes se ele não existisse. O que seria de mim, já que não teria onde recorrer a um empréstimo tão fiel e seguro. Ou sequer não teria com o que contornar as bordas dos meus dias comuns. Na expectativa de você voltar. E esse lápis se faz o pretexto de eu retroceder ao meu passado, divagando, conscientemente, pelo meu plano cartesiano, definido pelos meus eixos simétricos e coordenadas nítidas. Um pretexto de buscar a ti, minha infância, e, quem sabe, reencontrar quem eu tanto quero.
Foi quando eu tive uma brilhante idéia. E, com o mesmo lápis, utilizado para pintar o pano de fundo dos meus dias clichês, resolvi te desenhar. Sim, desenhar-te. Possivelmente, um decalque, porque não havia intenção alguma em distorcer a tua imagem, tão bem delineada nos contornos do meu pensamento. Então, imaginei aquele último dia, que, nas mesmas circunstâncias nubladas, tu olhavas para mim atentamente. Como se quisesse decifrar todos os mistérios presentes no meu olhar profundo e sincero. O teu porto-seguro. Enquanto eu segurava a tua mão, perpassava meus dedos por entre os teus, a fim de assegurar aquilo tudo ser uma verdade. E, de maneira firme, sem nem tu perceberes, eu te segurava contra os meus braços, em receio de, nos minutos subseqüentes, tu fazeres parte do meu passado. E não mais me aquecer. Nós sabíamos de tudo isso. Ou melhor, de tudo o que estava por vir. Apenas, fingíamos. Porque, apesar de não ter existido frases, nem promessas, existia mais alguém naquele cenário amordaçado e restrito, que executava nosso fluxo mental, nossa sintonia. O silêncio. Inabalável e confidente.  Que repousava em meio aos lençóis, que não mais nos envolvia, mas formatava nítido um divisor de águas.
Era uma despedia. Cordial.
(...)
Mas calma. Voltei ao meu estado presente e normal. E, depois de ter balançado a cabeça e esticado os braços, constatei a tua ausência. E, mobilizado pela vontade de seguir, ela tornou-se inexpressiva, arquivada como ponto no meu eixo cartesiano e guardada no seio da minha memória. Acontece que hoje está nublado; retroceder seria um exercício inevitável. Só que essa cor difusa, que mancha a suntuosidade do céu, não foi obra dos meus decalques. Talvez outro alguém esteja brincando de voltar ao passado. Talvez quisesse rememorar os fatos, sentir o cheiro e visualizar aquele universo de sensações. Tu, talvez. Porque só nós dois sabíamos a cominação possível, a dosagem perfeita daquela mistura de cores. De fatores.
Foi quando- em meio à janela do meu quarto e observando aquela visão panorâmica, aquele infinito- eu sorri. Foi quando eu, ainda garoto, também sorri, depois de ter constatado a ausência do lápis cinza na sua forma inteira.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Guarda-roupa.

Bate no peito um vazio.  E você, de repente, tenta buscar alguma forma, alguma medida capaz de estancar aquela finita distancia profunda entre a alma e os próprios sentidos, calcada nas linhas difusas dos seus mais íntimos pensamentos.
Tratava-se de um domingo. À noite. E, como outro qualquer, existiam apenas as confidências de uma pessoa singular e as paredes desbotadas do seu pequeno apartamento. Sim, era eu. Além de um guarda-roupa simplório que se fazia solitário, bem no canto, envolvendo-me com a sua tonalidade azul clara e transmitindo a mim uma pequena parcela de sua imponente tranqüilidade. Tranqüilidade essa que me entorpecia, em quase todos os sentidos e me fazia rotacionar ao longo do meu próprio eixo, formatado pelas minhas funcionalidades e convicções. Ou das minhas lembranças, das minhas recordações.  Um eixo duplo, sincrônico. E eu temia, justamente, essa sua capacidade inigualável de me fazer retroagir a um nível basal de nostalgia, modificando as minhas rotações internas, onde eu não conseguia sequer saber me diferenciar entre o passado e o presente. Onde eu, possivelmente, comprometeria o meu futuro e ficaria restrito e alienado a essas transições cíclicas dos tempos verbais. É, confesso. E quantas vezes eu me perdi, quanto tempo eu levei para me localizar e conduzir no meio das minhas incontáveis perdas nesse hemisfério torto e sem juízo, em que o tempo não se faz preciso. Não se faz presente. Onde não existe presente. Um universo, cujos comandos são direcionados pelos meus devaneios, pelo meu inconsciente e essa minha constante sede de viver tudo, sincopado em um único dia. Em um único momento. Onde os comandos não são unidirecionais e você, meu universo, fornece-me a possibilidade de concretizar todos os sonhos que contornam as minhas noites prazerosas. Pujantes, precisas. Onde eu possa ser verdadeiramente o que sou. Com as minhas múltiplas facetas, com as minhas diferentes entonações no riso e no olhar. Onde a minha oscilação de humor não se faça tão estranha, tornando-se admissível. E onde eu possa me sentir menos orgânico, porém mais sublime e ideal. Surreal.
Pois bem, meu caro amigo guarda-roupa, apesar de você me abduzir e transportar para o meu universo mental, dotado de qualidades e defeitos, prefiro permanecer nesse meu plano bidimensional. Estático. E, por vezes, apático. Inerte e sem sabor. Você bem sabe. E, nesse momento, sentado diante das minhas múltiplas possibilidades de modelar o futuro, posso lhe fitar me observando sedutoramente; sentir sua tranqüilidade contagiante e escutar, em um volume bem suave, as palavras balbuciadas, em silêncio, pela sua fechadura metálica. Um silêncio ensurdecedor. Intercalado por pausas bem colocadas, vírgulas bem pontuadas e uma gama de reticências, para enfatizar a sua subjetividade. Você é previsivelmente decifrável. A verdade é que somos cúmplices. Parceiros. Compartilhamos desabafos, damos conselhos. E eu aprecio a sua atenção incomparável. Sua serenidade, evidenciada ao escutar das minhas palavras, versando sobre as decepções e tristezas da vida. Sua complacência em me fazer sentir abraçado, aconchegado, mesmo que metaforicamente, a sua estrutura de ferro soldada. Sua presença, seu silêncio.
Mas você, nesse momento, tentava conduzir os meus passos e mobilizar minhas mãos para destrancá-lo. Deixá-lo aberto, nem que fosse por frestas, mas o suficiente para emanar, de dentro de si, todas as minhas lembranças arquivadas no seu interior. As cartas, os objetos, as roupas. Aliados ao agradável cheiro de passado latente. Nostálgico.  Ao som das músicas mais marcantes e que acabaram por representar pessoas bastante queridas e eternas. As fotos, não em tons amarelados, mas sobrecarregadas e com cunho psicológico forte, porque elas arrastam momentos e fatos passados. Dilacerados e reconstituíveis. Rememoráveis.
O fato é que você gosta de me ver perdido em meio a tudo isso. Em meio a essa sinestesia e confusão nos meus ritmos rotatórios. Em meio ao que penso, ao que prego como ideologia. Em meio aos meus paradoxos. Põe-me em rota de colisão em todos os sentidos. Mas acontece que estou cansado. Cansado de me perder, cansado de me achar. Cansado de descobrir e me redescobrir em meio a tanto ilusionismo. A tanta metafísica. E, enquanto você pensa em fantasiar com o meu presente, chacoalhando os fatos da minha memória, eu permaneço aqui, sentado. E sorrindo, apenas.

domingo, 3 de abril de 2011

Nossa música.

“I can tell by your eyes that you've probably been crying forever,
and the stars in the sky don't mean nothing to you, they're a mirror…”


São os versos de uma música de Rod Stewart, entoadas por uma alternância de vozes dele e do sonoro timbre de Amy Belle. Uma melodia suave a qual tornava todo aquele ambiente nostálgico, carregado de lembranças e motivos bons, acredito. E ela mobilizava a sua inércia, sua divagação. Com um olhar transparente e vítreo como se buscasse, em um passado não tão remoto, a resposta para aquele momento que se passava. Estatelado diante de si. Um passado latente, cujo formato era um puro decalque daquele presente. Só que redimensionado, porque o tempo reconfigura todos os aspectos possíveis e palpáveis. Afirma ou remodela nossos planos, nossas expectativas. Os nossos desejos. As nossas feições. E eu podia ver suas rugas dilatadas de uma forma que expressava uma preocupação constante, perpétua e, ao mesmo tempo, uma cautela sem igual. A sua cautela que me inspirava e ainda me inspira, quando tento por em prática o meu exercício de ser humano. De ser um ser humano. E apesar das falhas nos seus cabelos me mostrarem que os tempos não mais são os mesmos, ele se senta perto de mim, como sempre fez, extrai algumas palavras de seu acervo gramatical tão restrito e inicia uma conversa de amigo pra amigo. Ele é meu pai. E estava ali, tão próximo como de costume, mas no canto de uma roda de familiares, tão pensativo e distante. Uma distancia que eu podia filtrar milimetricamente pela sintonia dos nossos pensamentos.
 Foi quando ele soltou uma lágrima e, desconsertadamente, procurou-a pelos caminhos de seu rosto antes que eu fitasse aquele momento de fraqueza. E, enquanto ela descia, voltei ao nosso passado para sentir você drenando o meu medo de perdê-lo, intercalado pelos meus rítmicos suspiros e afagos, transpirados pelas minhas lágrimas de criança; para ouvir você, quando um dia teve que sair de casa, lamentar por aquilo tudo estar acontecendo, que não fazia parte dos seus planos e que você pedia para acreditar que era um bom homem. Que não ia me abandonar. E eu sempre acreditei com a mesma firmeza que você me carregava todas as noites nos braços, quando eu adormecia previsivelmente naquele sofá empoeirado.
 Mas música passava, o tempo estava passando, condensado naqueles versos. E eu podia sentir que você relutava contra essa efemeridade e ansiava por me levar novamente àquele parque perto de casa. Hoje, completamente, modificado. Só que a minha vontade era de correr. Sim, correr o mais rápido que pudesse para resgatá-lo daquela cascata de pensamentos, abraçá-lo fartamente e fazê-lo acreditar nas possibilidades futuras, nos nossos sonhos concretizados. Em uma família bem mais estruturada. Nas minhas utopias, no meu mundo. No nosso mundo. Só que você estava cético, porque já havia esperado demais, vendo o mundo mover as suas engrenagens, enquanto sonhava e, ao mesmo tempo, lamentava, sentado naquela velha cadeira branca, os fatos serem imutáveis. Foi assim que, com você, eu aprendi a sonhar. Buscar, acreditar. E eu tentava entender de onde brotava tanta esperança em um homem dotado de tão pouca fé. E a sua paciência se fazia como resposta bem mais plausível. Bem mais ajustável e real.
(...)
De repente você aterrissou e, recomposto de sua avalanche de lembranças, caminhou em minha direção. Cambaleante, receoso, porém firme. Contornou os meus traços faciais, a fim de constatar que seu filho não era mais aquela criança que, ansiosamente, esperava a sua volta para casa ao fim do dia e, que reclamava de seu bom gosto musical, das músicas dos Beatles. E me abraçou. Contundentemente. Com o desejo de parar o tempo e reprisar toda aquela música, toda aquela sinfonia inúmeras vezes, para que ela grafasse em nossa memória aquele momento que se esvaia, que sublimava; para tornar eternas suas palavras subseqüentes, as quais carrego em meu bolso e me refugio nos momentos de fraqueza. E ele disse: “Eu te amo e lamento por tudo isso. Você merecia muito mais e não pude fazer nada.”
Só que você, em meio à sua rara impotência, já havia feito tudo. Porque ainda me sinto em seus braços, porque ouço as suas singelas palavras ecoarem a todo instante e porque você não deixou a nossa música acabar.