terça-feira, 5 de abril de 2011

Guarda-roupa.

Bate no peito um vazio.  E você, de repente, tenta buscar alguma forma, alguma medida capaz de estancar aquela finita distancia profunda entre a alma e os próprios sentidos, calcada nas linhas difusas dos seus mais íntimos pensamentos.
Tratava-se de um domingo. À noite. E, como outro qualquer, existiam apenas as confidências de uma pessoa singular e as paredes desbotadas do seu pequeno apartamento. Sim, era eu. Além de um guarda-roupa simplório que se fazia solitário, bem no canto, envolvendo-me com a sua tonalidade azul clara e transmitindo a mim uma pequena parcela de sua imponente tranqüilidade. Tranqüilidade essa que me entorpecia, em quase todos os sentidos e me fazia rotacionar ao longo do meu próprio eixo, formatado pelas minhas funcionalidades e convicções. Ou das minhas lembranças, das minhas recordações.  Um eixo duplo, sincrônico. E eu temia, justamente, essa sua capacidade inigualável de me fazer retroagir a um nível basal de nostalgia, modificando as minhas rotações internas, onde eu não conseguia sequer saber me diferenciar entre o passado e o presente. Onde eu, possivelmente, comprometeria o meu futuro e ficaria restrito e alienado a essas transições cíclicas dos tempos verbais. É, confesso. E quantas vezes eu me perdi, quanto tempo eu levei para me localizar e conduzir no meio das minhas incontáveis perdas nesse hemisfério torto e sem juízo, em que o tempo não se faz preciso. Não se faz presente. Onde não existe presente. Um universo, cujos comandos são direcionados pelos meus devaneios, pelo meu inconsciente e essa minha constante sede de viver tudo, sincopado em um único dia. Em um único momento. Onde os comandos não são unidirecionais e você, meu universo, fornece-me a possibilidade de concretizar todos os sonhos que contornam as minhas noites prazerosas. Pujantes, precisas. Onde eu possa ser verdadeiramente o que sou. Com as minhas múltiplas facetas, com as minhas diferentes entonações no riso e no olhar. Onde a minha oscilação de humor não se faça tão estranha, tornando-se admissível. E onde eu possa me sentir menos orgânico, porém mais sublime e ideal. Surreal.
Pois bem, meu caro amigo guarda-roupa, apesar de você me abduzir e transportar para o meu universo mental, dotado de qualidades e defeitos, prefiro permanecer nesse meu plano bidimensional. Estático. E, por vezes, apático. Inerte e sem sabor. Você bem sabe. E, nesse momento, sentado diante das minhas múltiplas possibilidades de modelar o futuro, posso lhe fitar me observando sedutoramente; sentir sua tranqüilidade contagiante e escutar, em um volume bem suave, as palavras balbuciadas, em silêncio, pela sua fechadura metálica. Um silêncio ensurdecedor. Intercalado por pausas bem colocadas, vírgulas bem pontuadas e uma gama de reticências, para enfatizar a sua subjetividade. Você é previsivelmente decifrável. A verdade é que somos cúmplices. Parceiros. Compartilhamos desabafos, damos conselhos. E eu aprecio a sua atenção incomparável. Sua serenidade, evidenciada ao escutar das minhas palavras, versando sobre as decepções e tristezas da vida. Sua complacência em me fazer sentir abraçado, aconchegado, mesmo que metaforicamente, a sua estrutura de ferro soldada. Sua presença, seu silêncio.
Mas você, nesse momento, tentava conduzir os meus passos e mobilizar minhas mãos para destrancá-lo. Deixá-lo aberto, nem que fosse por frestas, mas o suficiente para emanar, de dentro de si, todas as minhas lembranças arquivadas no seu interior. As cartas, os objetos, as roupas. Aliados ao agradável cheiro de passado latente. Nostálgico.  Ao som das músicas mais marcantes e que acabaram por representar pessoas bastante queridas e eternas. As fotos, não em tons amarelados, mas sobrecarregadas e com cunho psicológico forte, porque elas arrastam momentos e fatos passados. Dilacerados e reconstituíveis. Rememoráveis.
O fato é que você gosta de me ver perdido em meio a tudo isso. Em meio a essa sinestesia e confusão nos meus ritmos rotatórios. Em meio ao que penso, ao que prego como ideologia. Em meio aos meus paradoxos. Põe-me em rota de colisão em todos os sentidos. Mas acontece que estou cansado. Cansado de me perder, cansado de me achar. Cansado de descobrir e me redescobrir em meio a tanto ilusionismo. A tanta metafísica. E, enquanto você pensa em fantasiar com o meu presente, chacoalhando os fatos da minha memória, eu permaneço aqui, sentado. E sorrindo, apenas.

3 comentários:

  1. Foi um convite aos seus pensamentos.. Imagino que a filosofia, afinal, existe! Ela é viva, real. Desculpe, não sei se muito agrada ser dotado de pensador, mas, ao meu ver, você questiona sua existência de mandeira notável! É muito bonito, Iago.. Continue com isso, porque assim você não será só mais um desses que passa pelo mundo e não entende que vive! Laís

    ResponderExcluir
  2. "Onde eu, possivelmente, comprometeria o meu futuro e ficaria restrito e alienado a essas transições cíclicas dos tempos verbais."

    Posso dizer que me perdi presa ao seu texto? Mas uma perda positiva, se ela existe. Talvez por ter tido fases na vida em que fui mais para dentro de mim mesma - ou por ainda ter momentos assim, que todos temos. E ir para bem dentro de si assusta, não é? Ao menos sempre me assustou. O receio de pensar demais, procurar demais, encontrar demais, justificar demais, divagar demais. Mas te contarei um segredo: escrever sempre me ajudou. E compartilhar, mais ainda. Então escreva, escreva. Estou orgulhosa e envolvida. E achando lindo. E sempre aqui para compartilhar com você.

    ResponderExcluir
  3. p.s.: Inveja de um guarda roupa que recebe palavras tão profundas assim.

    ResponderExcluir