domingo, 3 de abril de 2011

Nossa música.

“I can tell by your eyes that you've probably been crying forever,
and the stars in the sky don't mean nothing to you, they're a mirror…”


São os versos de uma música de Rod Stewart, entoadas por uma alternância de vozes dele e do sonoro timbre de Amy Belle. Uma melodia suave a qual tornava todo aquele ambiente nostálgico, carregado de lembranças e motivos bons, acredito. E ela mobilizava a sua inércia, sua divagação. Com um olhar transparente e vítreo como se buscasse, em um passado não tão remoto, a resposta para aquele momento que se passava. Estatelado diante de si. Um passado latente, cujo formato era um puro decalque daquele presente. Só que redimensionado, porque o tempo reconfigura todos os aspectos possíveis e palpáveis. Afirma ou remodela nossos planos, nossas expectativas. Os nossos desejos. As nossas feições. E eu podia ver suas rugas dilatadas de uma forma que expressava uma preocupação constante, perpétua e, ao mesmo tempo, uma cautela sem igual. A sua cautela que me inspirava e ainda me inspira, quando tento por em prática o meu exercício de ser humano. De ser um ser humano. E apesar das falhas nos seus cabelos me mostrarem que os tempos não mais são os mesmos, ele se senta perto de mim, como sempre fez, extrai algumas palavras de seu acervo gramatical tão restrito e inicia uma conversa de amigo pra amigo. Ele é meu pai. E estava ali, tão próximo como de costume, mas no canto de uma roda de familiares, tão pensativo e distante. Uma distancia que eu podia filtrar milimetricamente pela sintonia dos nossos pensamentos.
 Foi quando ele soltou uma lágrima e, desconsertadamente, procurou-a pelos caminhos de seu rosto antes que eu fitasse aquele momento de fraqueza. E, enquanto ela descia, voltei ao nosso passado para sentir você drenando o meu medo de perdê-lo, intercalado pelos meus rítmicos suspiros e afagos, transpirados pelas minhas lágrimas de criança; para ouvir você, quando um dia teve que sair de casa, lamentar por aquilo tudo estar acontecendo, que não fazia parte dos seus planos e que você pedia para acreditar que era um bom homem. Que não ia me abandonar. E eu sempre acreditei com a mesma firmeza que você me carregava todas as noites nos braços, quando eu adormecia previsivelmente naquele sofá empoeirado.
 Mas música passava, o tempo estava passando, condensado naqueles versos. E eu podia sentir que você relutava contra essa efemeridade e ansiava por me levar novamente àquele parque perto de casa. Hoje, completamente, modificado. Só que a minha vontade era de correr. Sim, correr o mais rápido que pudesse para resgatá-lo daquela cascata de pensamentos, abraçá-lo fartamente e fazê-lo acreditar nas possibilidades futuras, nos nossos sonhos concretizados. Em uma família bem mais estruturada. Nas minhas utopias, no meu mundo. No nosso mundo. Só que você estava cético, porque já havia esperado demais, vendo o mundo mover as suas engrenagens, enquanto sonhava e, ao mesmo tempo, lamentava, sentado naquela velha cadeira branca, os fatos serem imutáveis. Foi assim que, com você, eu aprendi a sonhar. Buscar, acreditar. E eu tentava entender de onde brotava tanta esperança em um homem dotado de tão pouca fé. E a sua paciência se fazia como resposta bem mais plausível. Bem mais ajustável e real.
(...)
De repente você aterrissou e, recomposto de sua avalanche de lembranças, caminhou em minha direção. Cambaleante, receoso, porém firme. Contornou os meus traços faciais, a fim de constatar que seu filho não era mais aquela criança que, ansiosamente, esperava a sua volta para casa ao fim do dia e, que reclamava de seu bom gosto musical, das músicas dos Beatles. E me abraçou. Contundentemente. Com o desejo de parar o tempo e reprisar toda aquela música, toda aquela sinfonia inúmeras vezes, para que ela grafasse em nossa memória aquele momento que se esvaia, que sublimava; para tornar eternas suas palavras subseqüentes, as quais carrego em meu bolso e me refugio nos momentos de fraqueza. E ele disse: “Eu te amo e lamento por tudo isso. Você merecia muito mais e não pude fazer nada.”
Só que você, em meio à sua rara impotência, já havia feito tudo. Porque ainda me sinto em seus braços, porque ouço as suas singelas palavras ecoarem a todo instante e porque você não deixou a nossa música acabar.

3 comentários:

  1. Que texto lindo, Iago!
    Parabéns!
    :*

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  2. Que coisas tão lindas você disse e trasmitiu entre palavras tão sabiamente ordenadas. Esse seu vocabulário que sempre me parece tão seu, somado a esse ritmo literal também tão característico do seu estilo de ser, de ser humano - como você mesmo escreveu. E pude quase sentir o momento que você descreveu, bem como os sentimentos em torno dele. A nostalgia, o medo, a impotência, a saudade, o pesar e finalmente.. o amor. Ah, o amor, não é? Nossa, foi lindo, lindo. Tudo. É isso que eu posso dizer.

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  3. Muito bom!!! Me pareceu bem melancólico...
    Gostei mesmo.

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